O trabalho remoto, conhecido como home office, prometeu liberdade, mas trouxe consigo uma série de questionamentos profundos sobre a saúde mental.O desafio vai muito além da gestão de tempo ou da tecnologia; é uma reconfiguração radical dos espaços psíquicos entre o público e o privado, o desejo e a obrigação, o eu e o outro. O home office não mudou apenas onde trabalhamos, mas como nosso desejo e nosso mal-estar se organizam.
Um dos pilares da vida psíquica é a capacidade de criar limites (entre trabalho e lar, entre função e identidade). O home office dissolve violentamente esses limites. O escritório em casa significa que o Outro (a empresa, o chefe, as demandas) ganhou acesso irrestrito ao que deveria ser o santuário seguro do sujeito. O aplicativo de mensagens no celular pessoal é a materialização desse Outro onipresente e onisciente, que pode interpelar o sujeito a qualquer hora. Isso gera uma angústia difusa, um estado de alerta constante, pois o sujeito nunca está verdadeiramente “fora” ou “livre”.
O trajeto casa-trabalho (de carro, ônibus, metrô) funcionava como um rito de passagem simbólico. Era um tempo de transição onde o sujeito podia se desligar de um papel e se preparar para o outro. Sem ele, muitos se veem “jogados” diretamente de uma identidade para outra, sem elaboração psíquica, aumentando a sensação de esgotamento (burnout).
O confinamento no espaço doméstico pode levar a um estreitamento do mundo pulsional.
Com a diminuição drástica do contato social presencial, das atividades de lazer externas e dos encontros casuais, o trabalho pode se tornar o único objeto de desejo significativo disponível. Isso cria uma relação doentia e assimétrica, onde a vida psíquica fica refém da produtividade. O sujeito passa a ser apenas “aquele que trabalha”.
O Supereu não é a voz da razão, mas a voz implacável que exige e pune. No home office, sem a mediação do colega ao lado ou do horário de saída coletivo, o Supereu se torna hiperativo. A culpa por não estar produzindo “o suficiente” ou a sensação de que “deveria estar trabalhando agora” são manifestações dessa instância psíquica cruel, que explora a falta de limites físicos para torturar o sujeito.
Apesar da hiperconexão digital, o trabalho remoto pode ser profundamente solitário. As interações via Zoom são pobres. Elas fornecem informação, mas falta o corpo do outro, seus gestos, seu cheiro, a troca de olhares no corredor ou aquela conversa com cafezinho na copa – tudo o que compõe o laço social. Essa falta do outro concreto pode levar a um estado de desinvestimento libidinal do mundo, um apagamento do desejo.
O colega de trabalho não é apenas um concorrente ou um colaborador; é um semelhante, é aquele com quem podemos compartilhar um lamento, uma piada, um olhar de cumplicidade diante de um absurdo. Essa troca informal, essa “conversa de corredor”, é um poderoso regulador da angústia. Sua falta deixa o sujeito sozinho com suas demandas internas e externas.
A psicanálise não oferece fórmulas, mas indica caminhos para uma reinscrição do desejo. É crucial criar rituais que marquem o início e o fim do dia de trabalho. Pode ser uma caminhada ao redor do quarteirão, trocar de roupa, ouvir uma música específica. São atos simbólicos que ajudam a psique a fazer a transição.
É vital defender ferozmente um espaço ou atividade que não esteja contaminada pela lógica da produtividade. Um hobby, uma leitura prazerosa, o ócio, reivindicando o direito ao próprio gozo, fora da demanda do Outro.
A psicanálise oferece um lugar para elaborar essa nova realidade. É o espaço onde se pode falar dessa angústia, dessa culpa, dessa solidão, e reconstruir uma narrativa própria sobre o desejo, separando-o da demanda incessante do trabalho.
O home office não é intrinsecamente patológico, mas exige uma reorganização psíquica consciente. O desafio é evitar que o trabalho ocupe todo o campo do desejo e que o Outro empresarial invada toda a vida privada.
A saúde mental nesse contexto depende da capacidade do sujeito de recircular sua libido, investindo em outros objetos além do trabalho, e de restaurar barreiras simbólicas que protejam seu espaço psíquico. É, no fundo, uma luta pela preservação da própria subjetividade diante de um novo modo de vida que, sem cuidado, pode levar a uma erosão silenciosa do desejo.