A psicanálise realizou uma revolução em nossa compreensão do tempo a partir da noção de um aparelho psíquico. Diferente do tempo cronológico e linear, o inconsciente opera por uma lógica de retroação e reatualização. O conceito alemão Nachträglichkeit (traduzido para o francês como après-coup e para o português a posteriori) é a peça-chave para entender essa lógica. Ele descreve o processo pelo qual uma experiência passada, inicialmente incompreensível, só adquire seu valor traumático e significado psíquico a posteriori, quando é reinterpretada à luz de novas experiências e de um novo estágio de desenvolvimento do sujeito.
Freud descobriu a Nachträglichkeit clinicamente, através de suas investigações sobre a histeria e as neuroses. Ele observou que o trauma não era um evento único, mas uma condensação de duas cenas.
A Primeira Cena: Na primeira infância, a criança vive uma experiência de excitação sexual ou agressiva (ex.: observar os pais fazerem sexo, ser seduzida por um adulto, um exame médico). No entanto, ela é imatura do ponto de vista psíquico e sexual. Ela não compreende o significado sexual da cena, que permanece “adormecida”, registrada mas não interpretada, como um “corpo estranho” no psiquismo.
A Segunda Cena: Anos depois, na puberdade ou adolescência, um segundo evento aparentemente banal (um flerte, uma palavra, um olhar) ativa a memória da primeira cena. Agora, com a maturidade sexual e psíquica, o sujeito reescreve a primeira experiência, atribuindo-lhe um significado sexual que ela não tinha originalmente. É essa reinterpretação a posteriori que transforma a primeira cena em trauma e faz surgir o sintoma.
Lacan integrou radicalmente a Nachträglichkeit em sua teoria, elevando-a de um mecanismo clínico para um princípio estrutural da linguagem e do sujeito.
Para Lacan, o inconsciente é estruturado como uma cadeia de significantes. A Nachträglichkeit é o mecanismo pelo qual um significante posterior altera o significado de um significante anterior na cadeia. O sentido não está no significante isolado, mas no movimento de retorno sobre a cadeia.
Lacan dirá que o real não é o que aconteceu, mas o que insiste a partir do que foi significado retroativamente. O trauma real é inatingível; o que temos é sua reconstrução simbólica via après-coup (Nachträglichkeit).
O sujeito do inconsciente não existe em um “passado completo”. Ele é constantemente reconfigurado pelo futuro anterior: sujeito só advém depois, quando a cadeia significante se fecha temporariamente em uma significação.
A Nachträglichkeit não é um conceito de mera abstração; ele orienta toda a prática clínica:
O processo analítico é, em si, um processo de après-coup. Através da associação livre e da interpretação do analista, o analisante é convidado a recontar sua história. O analista oferece intervenções que permitem ao analisante revisitar suas memórias e atribuir-lhes novos significados, contornando os efeitos patogênicos dos seus sintomas. O passado é, assim, reescrito no presente.
O analista não é um arqueólogo que desenterra fatos passados intactos. Ele é um parceiro na reconstrução de uma verdade histórica que, por definição, é sempre mutável e reconfigurável. A ênfase não está no “fato real”, mas na verdade psíquica construída via Nachträglichkeit.
A interpretação analítica só é eficaz se o sujeito estiver em um momento de sua história onde ele possa re-significar o passado. Uma interpretação prematura cai no vazio; uma interpretação tardia perde sua força. Ela deve operar como a segunda cena, aquela que permite a reestruturação do significado.
A Nachträglichkeit é, portanto, um conceito que destrona a noção ingênua de um passado objectivo e fixo. Ele nos revela que somos seres biográficos, constantemente reescrevendo nossa própria origem. O passado não determina o presente de forma mecânica; na verdade, é o presente que constantemente determina e redefine o passado.
Em Freud, é o mecanismo que explica a gênese do trauma. Em Lacan, é a lógica mesma do funcionamento do inconsciente e da linguagem. Compreender a Nachträglichkeit é compreender que a análise é um trabalho de criação de um novo passado, ou melhor, de abertura de novas possibilidades de significação para o que insiste em se repetir como destino. É a liberdade de reescrever, a posteriori, a história que nos constitui.