“Jackie Brown”, thriller policial de Quentin Tarantino baseado no romance Rum Punch de Elmore Leonard, é um intrincado tabuleiro onde os personagens não negociam apenas dinheiro, mas seus próprios desejos. Jackie Brown não luta apenas contra um traficante de armas, mas executa um ato sublime de ressignificação de si mesma, operando com o desejo do Outro e se reescrevendo dentro da Lei Simbólica.
No início do filme, é presa e se vê em uma posição de objeto. Para Ordell Robbie, ela é um um objeto descartável em seu circuito de gozo (venda de armas e acumulação de dinheiro). Para a lei, ela é uma criminosa de pequeno porte, um sujeito fracassado. A genialidade de Jackie é perceber que ela pode sair dessa posição de objeto e se tornar sujeito de seu próprio desejo. Seu plano não é apenas ficar com o dinheiro, mas fazer isso de uma forma que a lei a absolva e Ordell seja destruído. Ela não quer simplesmente satisfazer uma necessidade (na ordem da sobrevivência); ela elabora um complexo plano para reconfigurar seu lugar no desejo do Outro (uma justiça). Isso é, na verdade, uma versão do que Lacan chama de “travessia da fantasma”: ela deixa de ser o objeto da trama dos outros para se tornar a arquiteta de sua própria narrativa.
Ordell Robbie é a encarnação de uma ilusão: a de um sujeito supostamente autossuficiente, dono de seu gozo. Ele fala constantemente, tentando preencher todo o espaço com sua palavra, definindo os outros. Ele acredita que controla o circuito de desejo de todos ao seu redor. No entanto, sua paranóia e sua necessidade de eliminar qualquer um que represente uma ameaça (mesmo que seja mínima) mostra sua profunda fragilidade. Ele é um sujeito radicalmente dependente dos outros para sustentar sua fantasia de onipotência. Sua queda começa justamente quando ele subestima Jackie, não a vendo como um sujeito de desejo, mas como um objeto que ele pode descartar facilmente. Seu gozo desmedido e sua recusa a se inserir de forma não-criminosa na Lei Simbólica são sua ruína.
A Lei em Jackie Brown opera em dois níveis: A Lei do Crime (Ordell): Uma operação perversa, onde o mais forte (ou o mais esperto) supostamente dita as regras. É uma paródia da Lei Simbólica, baseada apenas no poder e no gozo imediato. A Lei da Sociedade (a Justiça): Representada pelo agente da ATF, Ray Nicolette, e pelo sistema judicial. Jackie Brown é a personagem que melhor navega entre essas duas leis. Ela não as rejeita totalmente; ela as usa. Ela entende as regras do jogo simbólico (as leis da justiça, as regras de conduta) e as manipula a seu favor. Ela não desafia o Nome-do-Pai (a função ordenadora da Lei), ela busca uma saída dentro dele. Seu ato final é legitimado pela lei, que a “perdoa” e pune o verdadeiro criminoso.
O dinheiro é o que move todos os personagens. É o objeto de desejo inatingível que promete preencher a falta de cada um: para Ordell, é poder; para Melanie, é uma vida de prazeres; para Max Cherry, é a saída de uma vida cinza; para Jackie, é a liberdade e uma nova vida. O filme mostra, no entanto, que o objeto nunca satisfaz. A genialidade do plano de Jackie é que ela entende que o objeto (o dinheiro) só tem valor dentro de um circuito de desejo reconhecido pela Lei. Ela não rouba o dinheiro; ela o transfere de um circuito ilegítimo (Ordell) para um legítimo (seu bolso, com o aval tácito da justiça).
O personagem Max Cherry (Robert Forster) é crucial para a análise. Seu desejo por Jackie não é apenas romântico; é o desejo por alguém que ainda tem um projeto de vida, que ainda luta. Jackie se torna para ele o objeto causa de desejo. Ele a ajuda não apenas por amor, mas porque seu ato de rebeldia o tira de sua letargia melancólica. Ele investe em seu desejo, e no final, mesmo não ficando com ela, é recompensado com uma reativação de seu próprio desejo de viver (simbolizada pela devolução do carro e seu sorriso final).
“Jackie Brown” é a história de uma mulher que se recusa a ser o objeto a na fantasia de terceiros. Através da palavra, da paciência e de um plano meticuloso, Jackie Brown performa um ato de fala no sentido mais lacaniano: ela modifica sua realidade simbólica e muda de posição subjetiva. Ela não foge da lei; ela a convoca, para testemunhar e legitimar sua transformação. O filme, portanto, nos oferece uma lição psicanalítica: a verdadeira liberdade não está fora da Lei, mas em encontrar, dentro das regras do jogo simbólico, uma brecha para que o sujeito possa, finalmente, dizer “eu sou” de uma maneira inédita.