“Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004) além de um romance sci-fi; é uma narrativa cinematográfica que mergulha diretamente nos temas centrais da psicanálise lacaniana e da clínica contemporânea. A tentativa dos protagonistas Joel e Clementine de apagar suas memórias dolorosas serve como uma metáfora potente para a resistência ao inconsciente e a ilusão de completude lembrando-nos dolorosamente que o que nos constitui não é a lembrança, mas a marca do que esquecemos.
A Fantasia de Completude e a Falta
O motor que move a trama é a dor da perda e a ilusão de que, ao apagar o outro, apaga-se a própria falta. Lacan nos ensina que o desejo é sempre desejo do Outro, e é movido por uma falta estruturante. Joel, ao descobrir que Clementine o apagou de sua memória, busca uma “solução” simétrica: apagá-la também. Ele acredita, em sua fantasia, que pode eliminar a causa de seu sofrimento e retornar a um estado de indiferença, de “completude” imaginária anterior ao encontro. No entanto, a psicanálise demonstra que a falta é constitutiva e causa de desejo. A operação da empresa Lacuna, vende a promessa impossível de eliminar a falta, oferecendo uma “cura” pela supressão do sintoma (a memória dolorosa), e não pelo seu atravessamento. É a ilusão de um sujeito sem divisão, sem o trauma do encontro com o desejo.
O Inconsciente Estruturado como Linguagem e as Marcas do Outro
A cena central do filme, onde Joel revive suas memórias sendo apagadas, é uma ilustração perfeita do inconsciente estruturado como uma linguagem. As memórias não são apagadas como um todo; elas se desfazem em pedaços, em significantes (“Montauk”, “manta”, “azul do cabelo”). Lacan diz que “um significante é o que representa o sujeito para outro significante”. Clementine, como significante-mestre para Joel, o representa em sua cadeia de desejos. Apagá-la não é apagar um arquivo, é tentar riscar parte da própria estrutura que o constitui como sujeito desejante. Mesmo durante o apagamento, Joel tenta esconder Clementine em memórias de infância, onde “ela não pertencia” anteriormente. Este ato simboliza a resistência do inconsciente. O Real do seu desejo por Clementine insiste e retorna, mesmo no processo de sua suposta destruição. O sujeito em Joel luta para preservar aquilo que, paradoxalmente, também quer esquecer, pois sem aquelas memórias, algo fundamental de si mesmo se perderia.
A Ética do Desejo e a Repetição – O final do filme é profundamente psicanalítico. Mesmo com as memórias “apagadas”, Joel e Clementine são atraídos um pelo outro novamente, repetindo os mesmos padrões de atração e conflito. Isso ilustra o conceito de compulsão à repetição. O real de seu encontro traumático retorna. A fita com as gravações do procedimento, que eles ouvem no final, funciona como a encarnação de suas respectivas verdades. É doloroso, humilhante, mas é deles. A escolha final, de correrem juntos sob a chuva mesmo sabendo dos problemas que virão, é uma escolha ética na perspectiva de uma clínica psicanalítica que visa pela ética do sujeito do inconsciente: é a aceitação do desejo e da falta, a renúncia à fantasia de completude e a aposta em re-inscrever aquele laço, agora conscientes de sua natureza fundamentalmente paradoxal e impossível.
Conclusão – “Brilho Eterno” é, portanto, um longo argumento contra a negação do desejo. A análise do filme nos mostra que a memória, especialmente a traumática, não é um arquivo morto, mas um conjunto de significantes ativos que nos constituem. A tentativa de apagamento é uma luta perdida contra o próprio inconsciente, uma recusa em aceitar que somos feitos de nossas marcas e faltas. A verdadeira “cura” não está no esquecimento, mas na possibilidade de ressignificar nosso gozo e seguir desejando, mesmo sabendo que o objeto do desejo é, por definição, sempre algo perdido.