A Substância

A Substância (2024), estrelado por Demi Moore, pode ser interpretado de forma enviesada pelos conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, trabalhados por Jacques Lacan durante toda sua obra e transmissão de 1953 até 1980 em seu último seminário antes de seu falecimento em setembro de 1981.

O enredo do filme gira em torno de uma busca inescrupulosa de Elizabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, por uma substância que promete a “perfeição” física e um rejuvenescimento instantâneo, influenciada pela pressão dos padrões sociais de beleza. Essa busca pode ser entendida como uma tentativa de atingir o seu Ideal de Eu, conceito freudiano que Lacan elabora a partir do Estágio do Espelho¹ onde o sujeito forma sua identidade ao se ver refletido nos outros e nas imagens idealizadas pela sociedade, de forma resumida. No caso de Elizabeth, a imagem ideal que ela persegue é a perfeição física e a de juventude eterna, reflexo dos padrões impostos pela indústria da beleza e pelas expectativas sociais, situando-a no imaginário.

A deterioração física e emocional de Elizabeth, conforme ela usa a substância, negligenciando as orientações, representa a desalienação desse “Eu idealizado”, expondo sua fragilidade e a intangibilidade dessa perfeição. Aqui, adentramos o conceito de Real, aquilo que escapa à simbolização e perturba o sujeito quando confrontado (com a sua falta). A transformação grotesca de Elizabeth pode ser interpretada como um colapso do Simbólico, onde os significantes que sustentam sua identidade idealizada (juventude e beleza) falham, perdem seus bordas e fronteiras, emergindo um confronto com o Real — a decadência física e o embate com a morte que a sociedade tenta negar e maquiar.

A busca incessante pela perfeição remete também ao conceito de objeto a, o objeto causa do desejo sempre inacessível. Elizabeth acredita que, ao alcançar esse objeto (a “perfeição”), poderá preencher sua falta primordial. No entanto, como Lacan propõe, o desejo é infinito e impossível de ser alcançado, satisfeito e correspondido. Cada passo de Elizabeth em direção à “perfeição” a leva mais profundamente ao caos subjetivo, físico e afetivo e destacando a natureza destrutiva de um desejo insaciável.

Assim, “A Substância” pode ser lida como uma alegoria da tensão entre a imagem que o Sujeito desejante/gozante constroi no Imaginário e o confronto inevitável com o Real, que ameaça desmantelar essa imagem idealizada. O horror no filme surge do fracasso em reconciliar essas camadas da estrutura simbólica que sustenta o sujeito ao adentrar em sua relação com a Lei.

O filme expõe a fragilidade da identidade construída com base em demandas sociais opressivas e pela destrutividade da busca por ideais inatingíveis. Isso recorda as formas de sofrimento apresentados por Freud em “O mal-estar na cultura” escrito em 1929 ao tratar sobre o padecimento e o envelhecimento de nossos corpos questionando a suposta onipotência humana e manifestando a fragilidade diante da vida. Isso remete ao que Lacan propõe com o conceito de corpo falante² (o corpo como suporte do sujeito, que pode ter diversas manifestações; onde não só temos um, como somos um corpo), especialmente dentro de um contexto contemporâneo de obsessão pela aparência e pelo controle da própria imagem (e também do tempo cronológico), sob a égide de uma ótica do algoz capitalista, misógino, machista e neoliberal.

¹ Apresentado pela primeira vez em agosto de 1936, no congresso da Associação Psicanalítica Internacional em Marienbad. Contudo o trabalho não foi publicado nos anais do congresso daquele ano. Lacan continuou a refinar e modificar o conceito ao longo de sua carreira.A partir de 1953, o submeteu à ordem simbólica. Entre 1961 e 1980, Lacan introduziu o olhar como objeto a, em lugar do Outro, dando ao estágio uma ordem topológica.O estágio do espelho ocorre entre os 6 e 18 meses de idade da criança, momento crucial na formação da identidade, quando a criança reconhece sua imagem no espelho como “eu”.

² Inaugurado no seminário “Mais ainda” (homofonico da palavra francesa “encore” – ainda – com a expressão “en corps” – no corpo).